Brasil pode se beneficiar da mudança na cadeia produtiva global com a ‘desglobalização’, um termo que vem sendo cada vem mais debatido entre gestores, analistas e autoridades. A pandemia e a guerra da Ucrânia foram dois acontecimentos que levaram países a contestarem as suas dependências de outras nações em certas cadeias de suprimentos.
O desabastecimento e a falta de produtos podem mudar o jogo e os processos de produção mundial. A ex-primeira-ministra do Reino Unido, Theresa May, afirmou em agosto que não acredita no fim da globalização. “Sabemos que o livre mercado é um poder para o bem, pois ajuda a desenvolver economias e traz avanços, mas estamos em um período no qual as companhias e países estão com dúvidas quanto aos processos de cadeias de suprimentos”.
Conforme a membro do Comitê Executivo do Banco Central Europeu (BCE), Isabel Schnabel, o pano de fundo geopolítico mundial vem sendo um fator-chave para as altas da inflação e que os choques recentes não são temporários.
“A pandemia e a guerra provavelmente aumentarão a instabilidade nos próximos anos”, comentou em texto. “Hoje, a economia mundial corre o risco de se fragmentar em blocos de segurança e comércio concorrentes. A rede internacional que conecta nossas economias é frágil. Estamos testemunhando novas e alarmantes formas de protecionismo”.
Brasil de olho em atritos para mudança na cadeia produtiva global
De acordo com o CEO da Convex Research, Richard Rytenband, a economia global tem alternado entre ciclos de globalização e de desglobalização nos últimos séculos. “Geoffrey Jones, no livro Multinational and Global Capitalism, destaca dois ciclos. Uma primeira onda de globalização, de 1840 a 1929, seguido de uma de desglobalização, de 29 a 1979. Depois, outra onda de globalização de 1979 a 2008, seguida de uma de desglobalização de 2008 até hoje”.
De acordo com Richard, o início do ciclo de desglobalização começa na crise financeira global de 2008, que criou uma desconfiança mútua entre os países. Mesmo antes da pandemia, China e Estados Unidos “já se estranhavam, travando” o que ficou conhecido como uma guerra comercial.
A Covid-19 a escalada do conflito na Ucrânia, no entanto, aceleraram o processo. Em 1929, ano de início do último ciclo de desglobalização, também houve uma crise econômica que engatilhou o fechamento das economias. O período foi marcado pela Grande Depressão, pela Segunda Guerra Mundial e pelo período de estagflação dos anos 70.
“É um arranjo ruim no geral para a economia global, com a redução da cooperação e da geração de riqueza. É um momento marcado por um mundo fechado e por tensões geopolíticas”, contextualiza Rytenband. “A própria China, por exemplo, está mudando seu regime econômico e voltou a falar da Prosperidade Comum [termo da era Mao], que traz características de um país mais fechado e intervencionista”.
Brasil pode se beneficiar de evento de desglobalização
Para alguns especialistas, o Brasil pode tirar certo proveito do processo de desglobalização – tendo, inclusive, já se beneficiado um pouco das alterações que se deram até então.
“A guerra da Ucrânia, que é um grande produtor de alimentos, com a Rússia, destaque em fertilizantes em combustíveis, foi positiva para Brasil por ter deslocado a demanda externa para cá, principalmente a por alimentos”, explica Tatiana Pinheiro, economista-chefe da Galapagos Capital.
No trigo, por exemplo, o Brasil ganhou parte do mercado internacional, as exportações da commodity, até julho deste ano, já batiam 2,51 milhões de toneladas, mais do que a 1,29 milhão de tonelada exportada em todo o ano passado.
“O Brasil se beneficia por ser um exportador líquido de commodities. Nós temos saldo positivo. Somos líderes na produção de várias e em outras estamos os cinco maiores produtores”, complementa Tatiana. “Além disso, nossa pauta de exportação é muito diversificada. Outros países têm suas exportações muito concentradas. Você olha a Argentina, é soja. O Chile, metais”
A economista pontua que o Brasil, até 2022, teve 18% das suas exportações pautadas em soja. Minério vem atrás, com 12%. Óleos e combustíveis, com 9%. Nesses cinco produtos temos 50% da pauta. “Temos mais 50%, que entra algodão, café, açúcar, frango e por ai vai”, diz.
Para além de fornecer produtos não manufaturados, cujas cadeias foram impactadas, o Brasil, para especialistas, também pode se beneficiar do processo de redistribuição da cadeia produtiva industrial.
“No processo de regionalização, faz sentido o Brasil se beneficiar. Ele está em uma posição privilegiada, conseguindo atender tanto aos Estados Unidos quanto à Europa, e oferece. E nossa mão de obra está barata. O custo do trabalho, por aqui, também está competitivo”, defende a especialista da Galápagos.
Ela lembra que, anteriormente, o país já viveu outros processos de industrialização – entre 2007 e 2010, por exemplo, houve a chegada de diversas indústrias, que foram embora, porém, quando o real se fortaleceu e a mão de obra ficou mais cara.
“Em salário, voltamos a ser competitivos, com o câmbio mais fraco, mas não sei se a pouca qualificação atrapalhará. A avaliação dos estudantes brasileiros é muito baixa”, explica a economista.
Brasil cadeia produtiva global
Teoria de desglobalização encontra resistência
Apesar de haver movimentos de países buscando uma menor dependência de cadeias de produção globais, há também especialistas que defendem que falar em desglobalização seria algo exagerado.
Otaviano Canuto, membro sênior do Policy Center for the New South e ex-vice presidente no Banco Mundial, lembra, em artigo no site Poder 360 que, apesar dos recentes entraves, o comércio mundial, desde 2020, superou níveis pré-pandemicos. Mesmo a guerra da Ucrânia levou, segundo ele, a uma queda das transações abaixo das expectativas.
“No lado financeiro, também se pode dizer que ‘a morte da globalização foi anúncio exagerado’, a julgar pelos volumes de ativos externos de bancos em todos os setores no conjunto de países”, diz Canuto ao portal. “Haviam atingido um pico na época da crise financeira, caindo em seguida, mas recuperaram exuberância a partir de 2016”.
Para o especialista, as cadeias globais atuais, apesar de estarem estremecidas, têm um porquê em existir – e este é baseado, totalmente, na questão da eficiência. Abandonar a atual formação irá gerar ônus e, no passado, medidas protecionistas se mostraram negativas para companhias e também para os empregos.
Alguma rivalidade, para Canuto, porém, deve persistir, principalmente quando os assuntos são tecnologia de ponta e segurança nacional.
“Dos Balcãs Ocidentais à América Latina, os governos veem uma enorme oportunidade econômica pós-covid de reshoring e nearshoring. Mas tais ambições podem se mostrar otimistas demais”, diz Canuto, em parceria com Justin Yifu Lin e Pepe Zhang, em artigo ao Project Syndicate.
Para os especialistas, países que querem atrair investimentos, mesmo com a situação, deverão fazer seus “deveres de casa”. “Sem melhoras sustentáveis nos fundamentos internos – como estabilidade macroeconômica, certeza e simplicidade regulatória e legal, infraestrutura física, educação e capacitação, produtividade e inovação, além de promoção e facilitação das exportações -, o interesse dos investidores será modesto e de vida curta”, explicam.
Eles chamam atenção para o fato de que governos, mesmo em meio a essa “possível oportunidade”, não devem apoiar empresas inviáveis.
“Esperanças de relocalizar e avizinhar – assim como uma revitalização mais ampla das indústrias ou exportações nacionais – são mais viáveis nos países comprometidos com fundamentos, e menos naqueles que usam reformas de suas cadeias de suprimento como argumentos políticos”, finalizam.
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Fonte: Infomoney